REVISTA Nº 1515 10 Novembro 2001

Vírus domesticados

Em Lyon, uma dezena de cientistas, equipados com escafandros feitos por medida, estão em guerra contra a morte. Estudam nove dos vírus mais perigosos do Mundo, responsáveis por 13 milhões de mortes/ano. «O antrax não é uma questão de guerra bacteriológica, mas sim psicológica», explica a vice-presidente do P4.

Texto de Katya Delimbeuf, em Lyon

No coração da Europa, em Lyon, existe um laboratório de alta segurança que alberga alguns dos vírus mais perigosos do Mundo - aqueles para os quais não há vacina. É o único em funcionamento no velho continente. O P4 - que deve a sua sigla ao grau de patogenia dos microorganismos que contém - contribui desde 1999 para a saúde pública mundial e para travar as chamadas doenças emergentes, responsáveis por 13 milhões de mortes por ano. Mas, enquanto o Mundo vive tempos de insegurança, o Instituto Merieux aparenta uma força a toda a prova; e perante a psicose colectiva de uma ameaça biológica, garante: o bioterrorismo é sobretudo uma guerra psicológica.
«Se os terroristas forem inteligentes - e infelizmente, penso que já deram provas de que o são - perceberão que a guerra biológica não é produtiva; não 'rende'. Desenvolver este tipo de tecnologias é lento, limitado, caro. Não é o meio certo para matar muita gente.» É com a firmeza e a convicção dos esclarecidos que Claude Lardy, a vice-presidente da fundação que financia o P4, comenta a psicose que se instalou nos últimos tempos em torno da guerra bacteriológica, do antrax, da varíola e de todos os cenários hipotéticos que a opinião pública se pôs de repente a congeminar. É uma senhora franzina e pequena, na casa dos 60, vestida com uma saia-casaco de malha, de aspecto elegante e extremamente lúcida. Trabalhou durante dez anos com Charles Merieux, o «pai» do Instituto, mas privou com ele durante 50 anos. Conhece bem os meandros da ciência, embora não tenha formação nessa área. É séria e eficiente, sabe perfeitamente o filão que o P4 representa para os jornalistas neste momento, e por isso tem cuidado na forma como lhes responde. Abre-lhes as portas, mas pede-lhes em contrapartida rigor e a mesma seriedade.
E os casos de antrax? «O antrax não é uma questão de guerra bacteriológica; é uma questão de guerra psicológica. Nunca poderá ser uma doença de massas, porque lhe falta um meio de difusão. O carbúnculo é uma bactéria com esporos, que tem a particularidade de se conservar muito tempo no solo. O vestígio mais antigo tem seis séculos e foi encontrado na Escócia. Nos EUA, há actualmente animais portadores do antrax. Em França, todos os anos temos casos de antrax em carneiros, num vale dos Alpes. Aliás, fizeram-se tratamentos antibióticos preventivos. Mas não foi por isso que houve uma epidemia no homem», continua.

Ébola, Lassa, Dengue, Nipah, West Nile, Marburg, Febre Amarela, Febre do Vale do Rift, Crimeia Congo: estes são os vírus contidos no P4 de Lyon, a segunda cidade francesa mais densamente povoada. O laboratório dedica especial atenção aos vírus de febres hemorrágicas. No seu interior, alberga exclusivamente microorganismos de tipo 4, de acordo com uma tipologia internacional que atribui a estes vírus o maior grau de patogenia. Mas, em tempos de ataques terroristas espectaculares e à partida afastados de qualquer cenário racional, como explicar aos habitantes do bairro que este laboratório não representa um perigo para eles nem para a restante população? Esta é uma pergunta com que o Instituto Merieux já se viu diversas vezes confrontado. Com a psicose do bioterrorismo instalada, ter um centro com os vírus mais perigosos do mundo a dois quilómetros de casa não é nem um descanso para os moradores nem um factor de valorização imobiliária.
«Não se trata de discutir a solidez do edifício - porque depois de se ter visto o Pentágono e as torres do World Trade Center a arder, nada é indestrutível», garante Claude Lardy. «Trata-se de averiguar se, em caso de atentado, haveria algum perigo para as pessoas. Esse perigo não existe. Não existe porque o laboratório trabalha com quantidades ínfimas de vírus, insuficientes para infectar o homem. E não existe ainda porque, mesmo que um avião caísse em cima do P4, as temperaturas elevadas de uma explosão destruiriam todos os vírus. Estes perdem as suas capacidades infecciosas quando não são conservados a baixa temperatura e, além do mais, não vivem muito tempo em contacto com o ar. É que, para viver, um vírus precisa de uma célula. O vírus é um corpo morto, a célula é que está viva; ao contrário de uma bactéria, que é um corpo vivo, capaz de se multiplicar.» Relativamente à segurança do P4, tanto interna como externa, Claude Lardy mostra-se serena. Primeiro, porque a fortaleza de aço e vidro à prova de bala é permanentemente guardada, 24 horas por dia, sete dias por semana. Depois, porque há câmaras de vigilância por todo o lado, grades de dois metros de altura a toda a volta, e botões, no interior do edifício, de ligação imediata à polícia e aos bombeiros. Há ainda dois cientistas sempre de piquete, prontos a intervir a qualquer hora da noite. Quanto ao acesso à zona P4 propriamente dita, que constitui uma das três áreas do laboratório, é garantido apenas a uma dezena de cientistas, que utilizam pontualmente o equipamento para observação e experimentação. O pessoal autorizado só pode entrar mediante a apresentação de um «badge» magnético e de um código pessoal, confidencial. Assegura-se assim a impossibilidade de intrusos.
Dentro da zona P4, cada cientista tem o seu escafandro - uma herança da indústria nuclear -, que é de uso obrigatório, para sua própria protecção. Feito à medida de cada um - quer no tamanho do pé, quer em altura, quer no comprimento dos braços -, pesa dois quilos e é fortemente ventilado, a 600 litros de ar por minuto, que chega ao nível dos calcanhares e dos punhos, e não pela cabeça, como sucedia com os antigos, mais desconfortáveis porque bastante ruidosos, impossibilitando a comunicação com os outros cientistas nas mesmas condições. Antes de entrar no laboratório, os investigadores enchem o escafandro de ar e verificam se este não tem fugas - o ponto mais sensível são as luvas, pois uma simples seringa pode deitar tudo a perder. Nunca podem estar menos de três pessoas no laboratório, caso seja necessário evacuar alguém, e todos têm uma ligação permanente a um posto central de segurança, caso precisem de comunicar. O sistema de ar é independente de uma sala para a outra, não podendo duas portas ser abertas ao mesmo tempo, o que permite conter de imediato uma eventual fuga. O sistema é mantido em depressão e o ar filtrado, à entrada como à saída de todos os compartimentos. «Nada sai do P4», garante a vice-presidente da fundação que financia na totalidade os custos e a manutenção do laboratório de alta segurança, sem qualquer ajuda do Estado. Até os animais sujeitos a experiências são monitorizados em permanência, graças a um implante subcutâneo, tipo «pacemaker», que regista a tensão arterial, o ritmo cardíaco, permitindo saber se estão a dormir ou em coma.
São oito, no mundo inteiro, os laboratórios P4 com o mesmo conceito do de Lyon - o de «P4 escafandro». São chamados assim porque o seu uso é imprescindível no interior das instalações. Como este, existem três nos EUA, em Maryland, Atlanta e no Texas (este último, ainda não operacional); um na Rússia, em Kotsovo, na região de Novosibirsk; outro na África do Sul, em Sandringham; outro no Canadá, em Winnipeg; e um último na Suécia, em Sola, embora ainda não a funcionar. Em conjunto, constituem a vanguarda da investigação, contribuindo para a saúde pública mundial e para a ajuda aos países em vias de desenvolvimento, contra surtos epidémicos e doenças emergentes ou re-emergentes. Na senda dessa mesma vanguarda, o P4 de Lyon vai ainda, à luz de um acordo celebrado com a NASA, receber as amostras de solo marciano, quando a missão espacial regressar, em 2008. Consideradas potencialmente perigosas, pelo facto de poderem conter bactérias patogénicas, as amostras rumam ao P4 para serem estudadas, em condições marcianas, especialmente criadas para garantir o máximo de protecção mas também de rigor. A grande esperança é encontrar vestígios de vida no Planeta Vermelho - enquanto, por cá, no Planeta Azul, se continua a estudar para melhor combater a morte.

     

 



Doentes infectados com o vírus do Ébola numa enfermaria no hospital de Gulu, no Norte do Uganda